Música

Segredos desvendados num caderno de menina com flores

A promessa, já revelava o título do concerto da sexta-feira, era entrarmos para o interior de Mingas, que desde a década de 90 até aos dias que correm, vem nos legando clássicos.

“Os Segredos do acústico” foi o nome que a intérprete, proprietária de algumas das músicas expostas na galeria das vaidades artísticas moçambicanas, deu ao que vimos no Centro Cultural Franco-Moçambicano, em Maputo.

Em palco, Mingas trouxe um conceito que funcionou como que o abrir as páginas do diário de uma adolescente, mas que no caso são de uma mulher com um percurso notável.

Sentada no centro de um palco adornado com flores, a recordar os desenhos que as meninas fazem nos seus cadernos de confidência, a interprete revelou os primeiros parágrafos através de “Ava sati va lomu”.

 Através de uma das relíquias do seu repertório, na qual ressignificou e eternizou a composição de Fany Mpfumo, naquele ritual, que é o concerto de música ao vivo, assumiu que um dos seus segredos é o culto à memória.

O tema, revelou, fez a trilha sonora de uma parte da sua vida, foi uma daquelas companhias cuja importância tentou traduzir na sua versão da música. E seguiu-se “Moz nutrido”.

No formato intimista, não foi a Mingas que, com Chico António, partilha a paternidade da Maria, a espalhar energia, preenchendo o palco ao ritmo do baile. Foi uma Mingas fixa a cadeira, a respeitar o distanciamento que se impõe mesmo ali naquele acto solene.

A cantora intercalava as músicas contando histórias, a partilhar a sua relação com os temas, ajudando na leitura do repertório do concerto. Noutras vezes reflectia sobre a sociedade, sempre buscando estar mais próxima da audiência.

Quito Tembe, que já tinha lido o caderno que a dona da noite prometia, concebeu um jogo de luzes que criava uma atmosfera, por vezes de ambiente de quintal, em que a cantora se sentou na varanda ou no jardim para libertar o seu soprano e dar a conhecer a sua intimidade.

Dodó, na guitarra, e o seu companheiro de anos, Carlos Gove – que ela prefere tratar por Carlitos – no baixo, acompanharam-na até “Malaika”, depois, a partir de “Ma poison” partilharam a zona instrumental com Simão Nhacucule na mbira e Nelson na percussão.

A antiga integrante do Grupo RM, tal qual fez consigo a ícone sul-africana Miriam Makeba nos meados dos anos 90, revelou-nos, na primeira quadra de “Nyandhayeyo”, a voz da bailarina Adriana Jamisse.

Com acompanhamento de Moisés no violino, jovem fruto da Escola de Comunicação e Artes e da Orquestra Xiquitsi, Mingas seguiu a performance que experimentava outras possibilidades dos temas que já conhecíamos, interpretou-os doutro modo.

Em “Kadia”, “Pôr do sol”, “Bava anga psalanga”, “Rwanda”, esta mulher que se iniciou na Igreja Metodista Unida e revelou-se para a vasta audiência no “Foguetão”, “Xitimela 1001”, “Sheik”, “Búzio” e “Zambi”, sentia-se mais próxima do folclore, aquela forma da gente de cantar lá da zona.

Simulou-nos uma viagem para Cuba, por via de uma tela no centro do palco introduziu a pianista cubana Alana, no tema “Loku Nzi wa hi nyanyane”. “O zoom e outras novas tecnologias nos permitem fazer isso”, disse, a trazer a ideia de que o longe nunca foi tão perto quanto a internet nos possibilita.

Ainda cantou para a sua mãe, acompanhada por Alana, que afinal estava no auditório pequeno do Franco, que é uma sala contigua a Sala Grande, onde estávamos, na sua composição “Mamana”. Seguiu-se “Nza Um Kensa” e “Ndzumba”.

Em meio a isso vimos Adriana Jamisse dançar, em gestos que traziam pássaros para o palco, num som impecável de Paulo Borges na mesa técnica e a voz da diva (não a fabricada pelo marketing). Para além de revelar-nos a sua relação “muito família”, entre outros, ficou no ar a dúvida se o verdadeiro segredo que pretendia desvendar não a volta desta pequena reflexão: “estavam com medo que o mundo acabasse? – Pois saibam que os fins nada mais são que novos começos”.

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Música

Segredos desvendados num caderno de menina com flores

A promessa, já revelava o título do concerto da sexta-feira, era entrarmos para o interior de Mingas, que desde a década de 90 até aos dias que correm, vem nos legando clássicos.

“Os Segredos do acústico” foi o nome que a intérprete, proprietária de algumas das músicas expostas na galeria das vaidades artísticas moçambicanas, deu ao que vimos no Centro Cultural Franco-Moçambicano, em Maputo.

Em palco, Mingas trouxe um conceito que funcionou como que o abrir as páginas do diário de uma adolescente, mas que no caso são de uma mulher com um percurso notável.

Sentada no centro de um palco adornado com flores, a recordar os desenhos que as meninas fazem nos seus cadernos de confidência, a interprete revelou os primeiros parágrafos através de “Ava sati va lomu”.

 Através de uma das relíquias do seu repertório, na qual ressignificou e eternizou a composição de Fany Mpfumo, naquele ritual, que é o concerto de música ao vivo, assumiu que um dos seus segredos é o culto à memória.

O tema, revelou, fez a trilha sonora de uma parte da sua vida, foi uma daquelas companhias cuja importância tentou traduzir na sua versão da música. E seguiu-se “Moz nutrido”.

No formato intimista, não foi a Mingas que, com Chico António, partilha a paternidade da Maria, a espalhar energia, preenchendo o palco ao ritmo do baile. Foi uma Mingas fixa a cadeira, a respeitar o distanciamento que se impõe mesmo ali naquele acto solene.

A cantora intercalava as músicas contando histórias, a partilhar a sua relação com os temas, ajudando na leitura do repertório do concerto. Noutras vezes reflectia sobre a sociedade, sempre buscando estar mais próxima da audiência.

Quito Tembe, que já tinha lido o caderno que a dona da noite prometia, concebeu um jogo de luzes que criava uma atmosfera, por vezes de ambiente de quintal, em que a cantora se sentou na varanda ou no jardim para libertar o seu soprano e dar a conhecer a sua intimidade.

Dodó, na guitarra, e o seu companheiro de anos, Carlos Gove – que ela prefere tratar por Carlitos – no baixo, acompanharam-na até “Malaika”, depois, a partir de “Ma poison” partilharam a zona instrumental com Simão Nhacucule na mbira e Nelson na percussão.

A antiga integrante do Grupo RM, tal qual fez consigo a ícone sul-africana Miriam Makeba nos meados dos anos 90, revelou-nos, na primeira quadra de “Nyandhayeyo”, a voz da bailarina Adriana Jamisse.

Com acompanhamento de Moisés no violino, jovem fruto da Escola de Comunicação e Artes e da Orquestra Xiquitsi, Mingas seguiu a performance que experimentava outras possibilidades dos temas que já conhecíamos, interpretou-os doutro modo.

Em “Kadia”, “Pôr do sol”, “Bava anga psalanga”, “Rwanda”, esta mulher que se iniciou na Igreja Metodista Unida e revelou-se para a vasta audiência no “Foguetão”, “Xitimela 1001”, “Sheik”, “Búzio” e “Zambi”, sentia-se mais próxima do folclore, aquela forma da gente de cantar lá da zona.

Simulou-nos uma viagem para Cuba, por via de uma tela no centro do palco introduziu a pianista cubana Alana, no tema “Loku Nzi wa hi nyanyane”. “O zoom e outras novas tecnologias nos permitem fazer isso”, disse, a trazer a ideia de que o longe nunca foi tão perto quanto a internet nos possibilita.

Ainda cantou para a sua mãe, acompanhada por Alana, que afinal estava no auditório pequeno do Franco, que é uma sala contigua a Sala Grande, onde estávamos, na sua composição “Mamana”. Seguiu-se “Nza Um Kensa” e “Ndzumba”.

Em meio a isso vimos Adriana Jamisse dançar, em gestos que traziam pássaros para o palco, num som impecável de Paulo Borges na mesa técnica e a voz da diva (não a fabricada pelo marketing). Para além de revelar-nos a sua relação “muito família”, entre outros, ficou no ar a dúvida se o verdadeiro segredo que pretendia desvendar não a volta desta pequena reflexão: “estavam com medo que o mundo acabasse? – Pois saibam que os fins nada mais são que novos começos”.

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Exposições, Reflexão

Aproximações incompletas?

Quehá (1975), um dos artistas plásticos mais actuantes dos últimos trinta anos em Moçambique inicia o seu percurso seguindo os traços de Samate, Tinga e é, em parte, moldado por Victor Sousa, o que se evidencia nalgumas formas que explora nesta colectiva.

Continuando a tradição, Quehá, recebeu Vovo’s (1980) no seu atelier e fez-se seu mestre em 1992. Aproximações incompletas é, portanto, o culminar de partilhas de tintas, pinceis, imaginários e, no essencial, das visões de mundo tecidas nesse contexto.

Aproximações incompletas é um título que pretende ser o reflexo das similaridades de ambos e das fronteiras que os distinguem neste universo pictórico marcado socialmente e em que o acto de manter a esperança viva é, em si, Obra.  

Com efeito, há quem diga que os artistas se antecipam no tempo, o relógio regular não os alcança. Depois de um período em que o país viveu várias expectativas, desgraças fixaram residência em Moçambique. No ano passado, foi o Idai que dilacerou a cidade da Beira, deixando-a, literalmente, “sem eira”. O Keneth, mancomunado com o pandemónio invadiu Cabo Delgado na costa, enquanto no interior “o cano já assobiava mais que os grilos”, decapitando sonhos, projectos, realizações e, no essencial, vidas, humanos, moçambicanas.

Quehá e Vovo’s ainda vêm luz diante deste quadro, não obstante, abre a sua cortina e empresta cores fortes a composições tristes, crentes de que a busca pelo mundo perfeito, na perspectiva cristã, não se esgota.

Recordemos a primeira exposição “Descoberta”, em 1991, a esta parte Quehá já expôs telas feitas com a técnica de acrílico mas a técnica mista mostrou-se mais regular, que é a que escolheu para esta exposição.

Os motivos das pinturas apresentadas passam pela frustração que marca este ano, 2020, que vinha vestido de muita expectativa até cruzar a porta e revelar-se coberto de incertezas e de receios costurados pela pandemia que assola ao mundo. O mestre, através de composições povoadas por semblantes combalidos, empresta cores vivas e fortes como que a tentar agarrar a luz e mantê-la acesa para não perdermos os traços do rosto da esperança. Ao mesmo tempo que é um convite para regressarmos às nossas tradições e manifesta preocupações ecológicas.

Vovo’s, por sua vez, desafiado (e a desafiar) pelo mestre, propõe conversas que não se esgotam como a paz, simbolizada em algumas formas que lembram pássaros, que também podem significar liberdade ou simplesmente a lembrar-nos que no ideal do paraíso as paisagens são belas e compostas por aves. Vovo’s é um discípulo que ganhou autonomia criativa, abraçando outras referências, entre as quais, por exemplo, os desenhos de Malangatana, Chichoro ou um Chissano. E, nesse percurso, quer antecipar-se e ilustrar a nova realidade que vai ganhando forma. Partindo de referências historicamente diferentes do mestre, investe na cor, que acredita ser vida, para transmitir as emoções da perseverança. E desenhar o que nos espera.       

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